Este
conto é dedicado à Isabela.
Muitos
e muitos anos atrás, existia um ogro que vivia isolado numa cabana
amedrontadora localizada dentro da Floresta dos Perdidos. O ogro tinha uma
estatura bem alta, mais alta do que qualquer homem daquela região e sua
aparência não era nada amigável. Ele era assustador.
Todos
os ogros gostavam de comer carne humana, mas esse não. Por algum motivo, carne
humana era um prato que não lhe caía muito bem. Humanos lhe davam náuseas.
Então, ele costumeiramente se alimentava de pequenos animais que caçava e de
frutas que colhia fresquinhas diretamente das árvores. Fazia muito tempo que o
ogro tinha se isolado na Floresta dos Perdidos e desde então ele nunca mais
vira um humano.
A
Floresta dos Perdidos não tinha este nome por acaso. Lá moravam as mais
maléficas e poderosas bruxas, gnomos e duendes violentos, elfos sem índole,
fadas más, almas penadas, fantasmas e até mesmo o Senhor das Trevas. Todos eles
com um coração tão podre que nunca mais conseguiriam ter um coração bom. Eram
seres que haviam feito muita maldade aos outros porque pensavam só em
benefícios para si mesmos. Eram casos irremediáveis, ou seja, eram casos
perdidos. Daí veio o nome: Floresta dos Perdidos.
Porém,
nesta floresta também viviam seres que faziam tanta maldade para si que
qualquer um que visse seu coração negro poderia jurar que eram casos perdidos.
Estes seres também eram maus com os outros, mas nada se comparava com a maldade
que faziam consigo. Estas criaturas escolhiam viver na Floresta dos Perdidos
por se julgarem indignas e por pensarem que não tinham mais salvação. Isolavam-se
por se desprezarem, por acharem que suas vidas já não valiam mais nada.
Consideravam que tudo existente no mundo seria incapaz de encher de alegria
seus vazios corações. Era assim com o ogro.
Todo
mundo tinha medo da Floresta dos Perdidos. Mesmo corações bons que entrassem
lá, corriam o risco de se perderem. As pessoas se arrepiavam só de ouvir falar
naquele lugar. Então, era raro alguém que ousasse entrar lá. E mais raro ainda
quem conseguisse sair.
Ouvindo
um barulho incomum, o ogro saiu da sua trilha de caça e seguiu os rastros do
som. Após alguns minutos, ele avistou uma menina e mantendo distância,
perguntou:
— Por
que você está chorando, menina?
—
Porque estou perdida e preciso de ajuda - respondeu ela se assustando ao
perceber que se tratava de um ogro.
— Não
se assuste, não vou lhe fazer mal. Ouvi um grunhido e achei que fosse uma caça
diferente. Para sua sorte, não como humanos. Para seu azar, humanos me dão
náuseas, não chego nem perto de um. Sendo assim, não posso ajudar. Vou seguir o
meu caminho e você siga o seu.
Após
virar as costa e caminhar alguns passos, voltou-se e disse:
— Ah…
Tome muito cuidado com a maldade dos seres desta floresta, se você conseguir
sair daqui nunca mais volte. - e prosseguiu até a sua cabana sem olhar nenhuma
vez para trás.
Aterrorizada
pela possibilidade de voltar a ficar sozinha naquela floresta, a menina seguiu
o ogro. Ela teve de andar depressa para acompanhar os compridos passos que ele
dava. Alguns minutos depois, ainda com lágrimas nos olhos, viu que ele entrou
em uma casinha simples de madeira e palha. Sem pensar duas vezes, a menina foi
até a cabana do ogro e bateu na porta: toc, toc.
— Vá
embora, menina! Não gosto de visitas. - gritou o ogro lá de dentro.
— Por
favor, senhor Ogro, me ajude. - implorou a menina. Não sei como voltar para
casa. Eu estou perdida…
—
Então, está no lugar certo! Você está na Floresta dos Perdidos! - bradou o ogro
interrompendo a menina.
Ela
voltou a bater na porta. Desta vez com um pouquinho mais de força e desespero:
toc, toc, toc.
Neste
momento, ele abriu a porta com raiva e foi para cima da garota, abaixou seu
rosto nivelando-o ao dela e olhando diretamente em seus olhos disse:
—
Menina, vá embora!
Acuada,
pela primeira vez ela sentiu medo do ogro e percebeu que ele não a ajudaria.
Ficou triste e desesperançosa. Sentiu um nó na garganta e seus olhos
expressaram o que sua alma sentia: a morte.
O
ogro percebeu uma mudança no olhar da menina. Por um breve momento seu grande e
pesado corpo captou o que ela estava sentindo. A alma dela estava morrendo. Ele
também já se sentira assim antes. É sempre assim: a alma morre antes do corpo.
O ogro era capaz de muitas maldades, mas matar uma alma era demais para
ele.
Então,
ele pegou seu sobretudo e seu arco e flecha e disse:
—
Levarei você até a saída. Estranhamente seu cheiro ainda não me deu enjoo. Além
disso, vou ter menos dor de cabeça sem você batendo à minha porta.
O
olhar da menina sorriu e ela disse “Obrigada!”, abraçando impulsivamente o
ogro. Devido a diferença de estaturas o abraço dela pegou em sua cintura. Ele,
com sua mão a afastou dizendo:
— É
melhor não chegar muito perto. Seu cheiro pode me fazer mal. Além disso, meu
cheiro vai impregnar em suas roupas e sua mãe vai brigar com você. É um cheiro
desagradável e difícil de sair.
— Eu
não tenho mãe. Minha mãe morreu quando eu era bem pequena. Nem me lembro dela.
Mas minha madrasta, sim, vai ficar brava quando eu chegar em casa cheirando à
ogro. Ela não é boa comigo.
— Por
que não? - quis saber o ogro.
— Ela
não faz muitas coisas boas para mim. Na verdade, só me lembro de uma coisa boa:
o passeio de hoje na floresta. Eu nunca tinha saído para passear antes. Mas
hoje viemos fazer um piquenique. Seria um dia muito feliz para mim se nós não
tivéssemos nos perdido umas das outras. Pela primeira vez, teríamos comida de
sobra...
—
Muito estranho! - interrompeu o ogro. - Ninguém passeia nesta Floresta. Nada de
bom acontece aqui. Nunca ouvi risadas por estas bandas. O primeiro sorriso que
vi aqui foi o seu. Acho que você é a única coisa boa nesta floresta. Por isto,
estou te levando para sua casa. E você só poderá sair daqui porque tem um
coração bom. Corações perdidos não saem desta floresta.
Caminharam
em silêncio por um bom tempo. A menina estava pensativa. Então, o ogro ouviu um
barulho alto e olhou para os lados em alerta tentando identificar o que havia
acontecido, mas logo foi acalmado pela menina:
—
Calma! Foi só a minha barriga. Faz alguns dias que não como nada…
O
ogro colocou a mão dentro da bolsa que carregava e tirou uma fruta. Deu para
ela e disse:
—
Coma esta fruta. Se eu soubesse que você estava com fome talvez tivesse lhe
oferecido um pouco da minha sopa de esquilo. Mas isto agora não tem muita
importância, chegamos na entrada da floresta e você pode sair. Vá, vá para
casa. Nunca mais volte aqui.
A
menina já conseguia avistar sua casa daquele ponto e feliz começou a correr em
direção a ela. No meio do caminho, lembrou-se de agradecer ao ogro, mas quando
olhou para trás, ele já havia desaparecido no meio das árvores.
Ela
entrou em seu casebre gritando de felicidade:
—
Voltei! Eu voltei.
A
casa estava silenciosa. Pensou que não havia mais ninguém. Porém, logo avistou
a meia-irmã, mais nova que ela, dormindo na cama. Aproximou-se e deu-lhe uns
chacoalhões suaves para acorda-lá.
—
Você está viva! - gritou surpresa a meia-irmã ao despertar. - Que alegria!
Nunca mais vou fazer isto.
—
Fazer o quê? - quis saber a menina.
Chorando
a meia-irmã começou a contar:
—
Minha mãe, sua madrasta, não gosta de você! Ela aproveitou que nosso pai fica
meses trabalhando longe de casa e quis que você sumisse na Floresta dos
Perdidos. Então, ela bolou um plano. Ela me disse “Filha, vamos levar sua
meia-irmã para dentro da floresta, o mais longe que conseguirmos. Vamos
abandoná-la e voltaremos para casa juntas. O dinheiro e a comida estão poucos,
se não fizermos isto, não sobreviveremos. Ninguém sentirá falta dela.” Eu
concordei, mas me arrependi rapidamente. Quando colocamos o primeiro pé
floresta adentro, eu já tinha entendido que não era verdade que ninguém
sentiria sua falta. Você faria muita falta para mim. Um enorme buraco se
abriria no meu coração. Então, falei para minha mãe que eu não queria mais te
abandonar na floresta. Quando eu ia pegar na sua mão para voltarmos juntas para
casa, ela me olhou com desprezo e disse “Sua imprestável, não serve para nada
mesmo. Gosta dela? Pois então, espero que se perca aqui como ela.” Então, ela
me empurrou com tanta força que eu caí e bati a cabeça, acho que foi numa
árvore. Fiquei desacordada. Quando recobrei os sentidos, ela já tinha te levado
para dentro da floresta e, por eu estar próxima à entrada da floresta, consegui
achar o caminho de volta.
Ainda
chorando ela continuou:
—
Você conseguiu sair de lá. Seu coração é bom. Mas a mamãe, eu não acho que
consiga. Ela se perdeu. A floresta não a deixará sair.
Anoiteceu.
Elas se abraçaram e dormiram assim, se sentido seguras uma com a outra.
No
outro dia, quando acordaram, viram uma mesa com vários tipos de frutas e um
ensopado de esquilo. Não era muito, mas era o suficiente para que as irmãs não
passassem fome naquele dia.
A
meia-irmã, logo que viu a mesa, chamou em voz alta:
—
Mamãe, você voltou?
Ninguém
respondeu. Então, ela chamou:
—
Papai? Você está aí? Você chegou de viagem?
Novamente,
ninguém respondeu.
A
menina logo percebeu que quem havia trazido aquela comida para elas só poderia
ter sido o ogro. Porém, naquele momento isto não importava muito. A fome
chamava mais atenção. Por isso, as duas se sentaram à mesa e saborearam aquela
pouca fartura nunca antes vista naquela casa.
Durante
o dia, enquanto a meia-irmã caçula brincava sozinha do lado de fora da casa, a
menina entrou novamente na Floresta dos Perdidos e foi até a cabana do ogro,
queria agradecer. Porém, ela não sabia o caminho, então, se perdeu.
— Não
falei para você nunca mais voltar aqui? - perguntou o ogro. - Por que entrou
novamente na Floresta dos Perdidos?
— Eu
precisava te ver. Você foi bondoso comigo. Queria te agradecer por ter me
ajudado a sair desta floresta e por ter levado aquela comida até a minha casa.
Minha irmã ficou muito feliz. E eu também. Obrigada! - ela se aproximou do ogro
e mais uma vez o abraçou.
— Do
que você está falando, menina? Eu não levei nada para sua casa. Não posso sair
da Floresta dos Perdidos.
—
Quer brincar? - perguntou a menina sem se importar com a resposta dada pelo
ogro.
—
Ogros não brincam.
—
Claro que brincam, quer ver? Venha me procurar!
A
menina adentrou ainda mais a floresta se escondendo do ogro. Ele sempre a
encontrava. Foi assim o dia inteiro. E no dia seguinte também. E no outro.
Todos os dias, ao amanhecer, a mesa da casa dela tinha comida o suficiente para
ela e a meia-irmã comerem o dia inteiro. E todos os dias a menina entrava na
floresta e procurava o ogro para brincar. Ele sempre a levava até a saída da
floresta. Após meses, de tanto se divertir pela floresta, ela já não precisava
mais do ogro para sair. Ela já conhecia a floresta como a palma da sua mão. Ia
e voltava da casa do ogro sem a ajuda de ninguém.
Um
dia o ogro perguntou:
— Por
que você vem aqui todos os dias?
E ela
respondeu:
—
Porque você é meu amigo. E eu nunca tive um amigo.
— Eu
também nunca tive uma amiga.
— Agora nós dois temos um ao outro. Somos
amigos. Como eu gosto de você, virei aqui todos os dias para brincar. Pode me
esperar!
Assim
ela fez. Por alguns anos,
todos os dias ele esperava pela menina. E ela sempre vinha. Até que um dia ela
não veio. E aquilo doeu no coração dele. O dia demorou para passar. Mas no dia
seguinte ela apareceu e ele perguntou:
— Por
que você não veio ontem?
— Não
vim porque não estava bem. Estava me sentindo estranha, confusa. Não sei explicar.
O céu amanheceu vermelho para mim. No lugar de azul, estava vermelho. E por
isso, não consegui sair de casa. Algo me prendia. Mas hoje estou melhor. Estou
boa para brincar de novo.
E
eles brincaram como antes. Depois deste dia, de tempos em tempos, a menina o
deixava esperando. No outro dia, a resposta era sempre a mesma:
— O
céu amanheceu vermelho.
O
ogro nunca entendia aquela resposta. Ele nunca tinha visto o céu amanhecer
daquela cor.
Com o
passar do tempo a menina foi começando a perder o interesse no ogro. Suas
brincadeiras com ele já não lhe interessavam. Para todas as brincadeiras que
ele inventava, ela dizia “não”.
Um
dia, a menina foi até a cabana do ogro e disse:
— Não
gosto mais de brincar com você. Na verdade eu nem gosto mais de você. Eu quero
que você engasgue com esse osso e morra.
Ela
foi embora e não voltou mais. Ele a esperava todos os dias, mas ela nunca
aparecia. Então, ele ficou angustiado. Chegou mesmo a pensar em se engasgar com
um osso e morrer de propósito.
Meses
depois, a menina reapareceu chorando:
—
Hoje ficamos sabendo que nosso pai morreu. Ele nunca mais voltará para casa.
Agora estamos órfãs, não temos mais ninguém. Pensando bem, sempre estivemos
sozinhas. Será que algum dia teremos alguém para cuidar da gente e nos guiar
até a vida adulta?
— Eu
cuidarei de vocês.
—
Como você cuidará de nós? Nem sequer pode sair da Floresta dos Perdidos. Desde
que minha madrasta se perdeu ficamos sozinhas. Tínhamos comida o suficiente,
mas não havia ninguém para nos ajudar a crescer e enfrentar o mundo. Precisamos
de alguém para nos orientar.
—
Calma, menina! Estarei aqui para vocês quando os dias amanhecerem azuis,
vermelhos ou cinzentos. Somos amigos.
—
Chegou um momento em que ter um amigo já não basta mais. Por isso, parei de te
visitar na Floresta dos Perdidos. A floresta passou a me influenciar. Comecei a
me sentir deslocada, perdida. Desde então, venho pensando seriamente em uma
coisa.
— Em
quê?
—
Você.... - ela ficou sem jeito de perguntar, estava receosa. - Você quer ser
nosso tutor?
—
Acho que não. Não posso sair da floresta...
—
Claro que pode. Você leva comida para nós todos os dias. Acha que não sei que é
você? Quem mais seria? Apesar de insistir que não pode sair da floresta, sei
que pode. É você quem cuida da gente. Sempre cuidou de mim desde o dia em que
te conheci.
— Sou
um caso perdido! Não tenho solução.
— Você
deixou de ser um caso perdido a partir do momento em que me ajudou a sair da
floresta naquele dia. Por isso você consegue sair da floresta: não é mais um
caso perdido!
—
Ainda me sinto como se fosse...
—
Todos nós nos sentimos perdidos em algum momento de nossas vidas. O que
precisamos fazer é encontrar pessoas nas quais podemos nos apoiar. Ajudar e ser
ajudado. Estou perdida agora. Não sei qual é o próximo passo a dar. Preciso de
você e acho que você também precisa de mim. Precisamos um do outro.
— Não
posso protegê-la dos males do mundo.
— Não é verdade. Você me protegeu todos os
dias de todas as criaturas malignas que habitam esta floresta. Nunca encontrei
nada que me fizesse mal. E foi você! Foi você que me defendeu de tudo. Sem a
sua proteção, eu não viveria um dia sequer.
Percebendo
que ela estava certa, o ogro aceitou o convite e tornou-se o tutor da menina e
de sua meia-irmã. Assim que ele saiu da floresta de mãos dadas com a menina,
algo mágico aconteceu diante dos olhos da garota. O ogro, que era grande, feio
e assustador, transformou-se em um homem de estatura normal e de boa
aparência.
Não
era a primeira vez que aquilo acontecia. Todas as vezes nas quais ele saía para
levar comida paras as meninas, ele se transformava naquele homem. Por este
motivo, após anos visitando o vilarejo, ninguém nunca fez alarde. Nunca viram
um perigoso ogro rondando suas casas. Aos olhos dos outros ele era normal, um
homem como outro qualquer.
A
transformação mágica acontecia porque fora da Floresta dos Perdidos, o ogro
tomava sua forma real, do ser humano que sempre foi. Quando ele entrava na
Floresta, ele se transformava no monstro que acreditava ser: um ogro.
Um
dia, a menina sentada ao lado da meia-irmã perguntou ao ogro:
—
Você não sente mais náuseas ao se aproximar de seres humanos?
E ele
respondeu:
— Ainda
sinto, mas hoje em dia, é bem raro que isso aconteça. Após conhecer melhor vocês
duas, algo em mim mudou. Acho que antes, eu conhecia os seres humanos errados.
Os que eu conhecia, realmente, me davam enjoos. Ainda dão quando me lembro
deles. Mas agora, que conheço os seres humanos certos, meu coração se enche de
alegria e felicidade quando eles chegam perto de mim.
Com o
coração vazio preenchido de coisas boas, o homem se sentiu feliz. Já não era
mais um ogro. Ao abraçá-lo mais uma vez, a menina também se sentiu feliz. Já
não era mais uma órfã, agora tinha alguém para apoiá-la enquanto crescia.
A
Floresta dos Perdidos continuava bem ali perto de onde moravam. No entanto, já
não se sentiam perdidos porque, tempos atrás, eles tinham se encontrado.
Eduardo
Franciskolwisk