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sexta-feira, 1 de dezembro de 2017

A menina e o ogro

Este conto é dedicado à Isabela.

Muitos e muitos anos atrás, existia um ogro que vivia isolado numa cabana amedrontadora localizada dentro da Floresta dos Perdidos. O ogro tinha uma estatura bem alta, mais alta do que qualquer homem daquela região e sua aparência não era nada amigável. Ele era assustador.

Todos os ogros gostavam de comer carne humana, mas esse não. Por algum motivo, carne humana era um prato que não lhe caía muito bem. Humanos lhe davam náuseas. Então, ele costumeiramente se alimentava de pequenos animais que caçava e de frutas que colhia fresquinhas diretamente das árvores. Fazia muito tempo que o ogro tinha se isolado na Floresta dos Perdidos e desde então ele nunca mais vira um humano.

A Floresta dos Perdidos não tinha este nome por acaso. Lá moravam as mais maléficas e poderosas bruxas, gnomos e duendes violentos, elfos sem índole, fadas más, almas penadas, fantasmas e até mesmo o Senhor das Trevas. Todos eles com um coração tão podre que nunca mais conseguiriam ter um coração bom. Eram seres que haviam feito muita maldade aos outros porque pensavam só em benefícios para si mesmos. Eram casos irremediáveis, ou seja, eram casos perdidos. Daí veio o nome: Floresta dos Perdidos.

Porém, nesta floresta também viviam seres que faziam tanta maldade para si que qualquer um que visse seu coração negro poderia jurar que eram casos perdidos. Estes seres também eram maus com os outros, mas nada se comparava com a maldade que faziam consigo. Estas criaturas escolhiam viver na Floresta dos Perdidos por se julgarem indignas e por pensarem que não tinham mais salvação. Isolavam-se por se desprezarem, por acharem que suas vidas já não valiam mais nada. Consideravam que tudo existente no mundo seria incapaz de encher de alegria seus vazios corações. Era assim com o ogro.

Todo mundo tinha medo da Floresta dos Perdidos. Mesmo corações bons que entrassem lá, corriam o risco de se perderem. As pessoas se arrepiavam só de ouvir falar naquele lugar. Então, era raro alguém que ousasse entrar lá. E mais raro ainda quem conseguisse sair.

Ouvindo um barulho incomum, o ogro saiu da sua trilha de caça e seguiu os rastros do som. Após alguns minutos, ele avistou uma menina e mantendo distância, perguntou:

— Por que você está chorando, menina?

— Porque estou perdida e preciso de ajuda - respondeu ela se assustando ao perceber que se tratava de um ogro.

— Não se assuste, não vou lhe fazer mal. Ouvi um grunhido e achei que fosse uma caça diferente. Para sua sorte, não como humanos. Para seu azar, humanos me dão náuseas, não chego nem perto de um. Sendo assim, não posso ajudar. Vou seguir o meu caminho e você siga o seu.

Após virar as costa e caminhar alguns passos, voltou-se e disse:

— Ah… Tome muito cuidado com a maldade dos seres desta floresta, se você conseguir sair daqui nunca mais volte. - e prosseguiu até a sua cabana sem olhar nenhuma vez para trás.

Aterrorizada pela possibilidade de voltar a ficar sozinha naquela floresta, a menina seguiu o ogro. Ela teve de andar depressa para acompanhar os compridos passos que ele dava. Alguns minutos depois, ainda com lágrimas nos olhos, viu que ele entrou em uma casinha simples de madeira e palha. Sem pensar duas vezes, a menina foi até a cabana do ogro e bateu na porta: toc, toc.

— Vá embora, menina! Não gosto de visitas. - gritou o ogro lá de dentro.

— Por favor, senhor Ogro, me ajude. - implorou a menina. Não sei como voltar para casa. Eu estou perdida…

— Então, está no lugar certo! Você está na Floresta dos Perdidos! - bradou o ogro interrompendo a menina.

Ela voltou a bater na porta. Desta vez com um pouquinho mais de força e desespero: toc, toc, toc.

Neste momento, ele abriu a porta com raiva e foi para cima da garota, abaixou seu rosto nivelando-o ao dela e olhando diretamente em seus olhos disse:

— Menina, vá embora!

Acuada, pela primeira vez ela sentiu medo do ogro e percebeu que ele não a ajudaria. Ficou triste e desesperançosa. Sentiu um nó na garganta e seus olhos expressaram o que sua alma sentia: a morte.

O ogro percebeu uma mudança no olhar da menina. Por um breve momento seu grande e pesado corpo captou o que ela estava sentindo. A alma dela estava morrendo. Ele também já se sentira assim antes. É sempre assim: a alma morre antes do corpo. O ogro era capaz de muitas maldades, mas matar uma alma era demais para ele.  

Então, ele pegou seu sobretudo e seu arco e flecha e disse:

— Levarei você até a saída. Estranhamente seu cheiro ainda não me deu enjoo. Além disso, vou ter menos dor de cabeça sem você batendo à minha porta.

O olhar da menina sorriu e ela disse “Obrigada!”, abraçando impulsivamente o ogro. Devido a diferença de estaturas o abraço dela pegou em sua cintura. Ele, com sua mão a afastou dizendo:

— É melhor não chegar muito perto. Seu cheiro pode me fazer mal. Além disso, meu cheiro vai impregnar em suas roupas e sua mãe vai brigar com você. É um cheiro desagradável e difícil de sair.

— Eu não tenho mãe. Minha mãe morreu quando eu era bem pequena. Nem me lembro dela. Mas minha madrasta, sim, vai ficar brava quando eu chegar em casa cheirando à ogro. Ela não é boa comigo.

— Por que não? - quis saber o ogro.

— Ela não faz muitas coisas boas para mim. Na verdade, só me lembro de uma coisa boa: o passeio de hoje na floresta. Eu nunca tinha saído para passear antes. Mas hoje viemos fazer um piquenique. Seria um dia muito feliz para mim se nós não tivéssemos nos perdido umas das outras. Pela primeira vez, teríamos comida de sobra...

— Muito estranho! - interrompeu o ogro. - Ninguém passeia nesta Floresta. Nada de bom acontece aqui. Nunca ouvi risadas por estas bandas. O primeiro sorriso que vi aqui foi o seu. Acho que você é a única coisa boa nesta floresta. Por isto, estou te levando para sua casa. E você só poderá sair daqui porque tem um coração bom. Corações perdidos não saem desta floresta.

Caminharam em silêncio por um bom tempo. A menina estava pensativa. Então, o ogro ouviu um barulho alto e olhou para os lados em alerta tentando identificar o que havia acontecido, mas logo foi acalmado pela menina:

— Calma! Foi só a minha barriga. Faz alguns dias que não como nada…

O ogro colocou a mão dentro da bolsa que carregava e tirou uma fruta. Deu para ela e disse:

— Coma esta fruta. Se eu soubesse que você estava com fome talvez tivesse lhe oferecido um pouco da minha sopa de esquilo. Mas isto agora não tem muita importância, chegamos na entrada da floresta e você pode sair. Vá, vá para casa. Nunca mais volte aqui.

A menina já conseguia avistar sua casa daquele ponto e feliz começou a correr em direção a ela. No meio do caminho, lembrou-se de agradecer ao ogro, mas quando olhou para trás, ele já havia desaparecido no meio das árvores.

Ela entrou em seu casebre gritando de felicidade:

— Voltei! Eu voltei.

A casa estava silenciosa. Pensou que não havia mais ninguém. Porém, logo avistou a meia-irmã, mais nova que ela, dormindo na cama. Aproximou-se e deu-lhe uns chacoalhões suaves para acorda-lá.

— Você está viva! - gritou surpresa a meia-irmã ao despertar. - Que alegria! Nunca mais vou fazer isto.

— Fazer o quê? - quis saber a menina.

Chorando a meia-irmã começou a contar:

— Minha mãe, sua madrasta, não gosta de você! Ela aproveitou que nosso pai fica meses trabalhando longe de casa e quis que você sumisse na Floresta dos Perdidos. Então, ela bolou um plano. Ela me disse “Filha, vamos levar sua meia-irmã para dentro da floresta, o mais longe que conseguirmos. Vamos abandoná-la e voltaremos para casa juntas. O dinheiro e a comida estão poucos, se não fizermos isto, não sobreviveremos. Ninguém sentirá falta dela.” Eu concordei, mas me arrependi rapidamente. Quando colocamos o primeiro pé floresta adentro, eu já tinha entendido que não era verdade que ninguém sentiria sua falta. Você faria muita falta para mim. Um enorme buraco se abriria no meu coração. Então, falei para minha mãe que eu não queria mais te abandonar na floresta. Quando eu ia pegar na sua mão para voltarmos juntas para casa, ela me olhou com desprezo e disse “Sua imprestável, não serve para nada mesmo. Gosta dela? Pois então, espero que se perca aqui como ela.” Então, ela me empurrou com tanta força que eu caí e bati a cabeça, acho que foi numa árvore. Fiquei desacordada. Quando recobrei os sentidos, ela já tinha te levado para dentro da floresta e, por eu estar próxima à entrada da floresta, consegui achar o caminho de volta.

Ainda chorando ela continuou:

— Você conseguiu sair de lá. Seu coração é bom. Mas a mamãe, eu não acho que consiga. Ela se perdeu. A floresta não a deixará sair.

Anoiteceu. Elas se abraçaram e dormiram assim, se sentido seguras uma com a outra.

No outro dia, quando acordaram, viram uma mesa com vários tipos de frutas e um ensopado de esquilo. Não era muito, mas era o suficiente para que as irmãs não passassem fome naquele dia.

A meia-irmã, logo que viu a mesa, chamou em voz alta:

— Mamãe, você voltou?

Ninguém respondeu. Então, ela chamou:

— Papai? Você está aí? Você chegou de viagem?

Novamente, ninguém respondeu.

A menina logo percebeu que quem havia trazido aquela comida para elas só poderia ter sido o ogro. Porém, naquele momento isto não importava muito. A fome chamava mais atenção. Por isso, as duas se sentaram à mesa e saborearam aquela pouca fartura nunca antes vista naquela casa.

Durante o dia, enquanto a meia-irmã caçula brincava sozinha do lado de fora da casa, a menina entrou novamente na Floresta dos Perdidos e foi até a cabana do ogro, queria agradecer. Porém, ela não sabia o caminho, então, se perdeu.

— Não falei para você nunca mais voltar aqui? - perguntou o ogro. - Por que entrou novamente na Floresta dos Perdidos?

— Eu precisava te ver. Você foi bondoso comigo. Queria te agradecer por ter me ajudado a sair desta floresta e por ter levado aquela comida até a minha casa. Minha irmã ficou muito feliz. E eu também. Obrigada! - ela se aproximou do ogro e mais uma vez o abraçou.

— Do que você está falando, menina? Eu não levei nada para sua casa. Não posso sair da Floresta dos Perdidos.

— Quer brincar? - perguntou a menina sem se importar com a resposta dada pelo ogro.

— Ogros não brincam.

— Claro que brincam, quer ver? Venha me procurar!

A menina adentrou ainda mais a floresta se escondendo do ogro. Ele sempre a encontrava. Foi assim o dia inteiro. E no dia seguinte também. E no outro. Todos os dias, ao amanhecer, a mesa da casa dela tinha comida o suficiente para ela e a meia-irmã comerem o dia inteiro. E todos os dias a menina entrava na floresta e procurava o ogro para brincar. Ele sempre a levava até a saída da floresta. Após meses, de tanto se divertir pela floresta, ela já não precisava mais do ogro para sair. Ela já conhecia a floresta como a palma da sua mão. Ia e voltava da casa do ogro sem a ajuda de ninguém.

Um dia o ogro perguntou:

— Por que você vem aqui todos os dias?

E ela respondeu:

— Porque você é meu amigo. E eu nunca tive um amigo.

— Eu também nunca tive uma amiga.

 — Agora nós dois temos um ao outro. Somos amigos. Como eu gosto de você, virei aqui todos os dias para brincar. Pode me esperar!

Assim ela fez. Por alguns anos, todos os dias ele esperava pela menina. E ela sempre vinha. Até que um dia ela não veio. E aquilo doeu no coração dele. O dia demorou para passar. Mas no dia seguinte ela apareceu e ele perguntou:

— Por que você não veio ontem?

— Não vim porque não estava bem. Estava me sentindo estranha, confusa. Não sei explicar. O céu amanheceu vermelho para mim. No lugar de azul, estava vermelho. E por isso, não consegui sair de casa. Algo me prendia. Mas hoje estou melhor. Estou boa para brincar de novo.

E eles brincaram como antes. Depois deste dia, de tempos em tempos, a menina o deixava esperando. No outro dia, a resposta era sempre a mesma:

— O céu amanheceu vermelho.

O ogro nunca entendia aquela resposta. Ele nunca tinha visto o céu amanhecer daquela cor.

Com o passar do tempo a menina foi começando a perder o interesse no ogro. Suas brincadeiras com ele já não lhe interessavam. Para todas as brincadeiras que ele inventava, ela dizia “não”.

Um dia, a menina foi até a cabana do ogro e disse:

— Não gosto mais de brincar com você. Na verdade eu nem gosto mais de você. Eu quero que você engasgue com esse osso e morra.

Ela foi embora e não voltou mais. Ele a esperava todos os dias, mas ela nunca aparecia. Então, ele ficou angustiado. Chegou mesmo a pensar em se engasgar com um osso e morrer de propósito.

Meses depois, a menina reapareceu chorando:

— Hoje ficamos sabendo que nosso pai morreu. Ele nunca mais voltará para casa. Agora estamos órfãs, não temos mais ninguém. Pensando bem, sempre estivemos sozinhas. Será que algum dia teremos alguém para cuidar da gente e nos guiar até a vida adulta?

— Eu cuidarei de vocês. 

— Como você cuidará de nós? Nem sequer pode sair da Floresta dos Perdidos. Desde que minha madrasta se perdeu ficamos sozinhas. Tínhamos comida o suficiente, mas não havia ninguém para nos ajudar a crescer e enfrentar o mundo. Precisamos de alguém para nos orientar.

— Calma, menina! Estarei aqui para vocês quando os dias amanhecerem azuis, vermelhos ou cinzentos. Somos amigos.

— Chegou um momento em que ter um amigo já não basta mais. Por isso, parei de te visitar na Floresta dos Perdidos. A floresta passou a me influenciar. Comecei a me sentir deslocada, perdida. Desde então, venho pensando seriamente em uma coisa.

— Em quê?

— Você.... - ela ficou sem jeito de perguntar, estava receosa. - Você quer ser nosso tutor?

— Acho que não. Não posso sair da floresta...

— Claro que pode. Você leva comida para nós todos os dias. Acha que não sei que é você? Quem mais seria? Apesar de insistir que não pode sair da floresta, sei que pode. É você quem cuida da gente. Sempre cuidou de mim desde o dia em que te conheci.

— Sou um caso perdido! Não tenho solução.

— Você deixou de ser um caso perdido a partir do momento em que me ajudou a sair da floresta naquele dia. Por isso você consegue sair da floresta: não é mais um caso perdido!

— Ainda me sinto como se fosse...

— Todos nós nos sentimos perdidos em algum momento de nossas vidas. O que precisamos fazer é encontrar pessoas nas quais podemos nos apoiar. Ajudar e ser ajudado. Estou perdida agora. Não sei qual é o próximo passo a dar. Preciso de você e acho que você também precisa de mim. Precisamos um do outro.

— Não posso protegê-la dos males do mundo.

 — Não é verdade. Você me protegeu todos os dias de todas as criaturas malignas que habitam esta floresta. Nunca encontrei nada que me fizesse mal. E foi você! Foi você que me defendeu de tudo. Sem a sua proteção, eu não viveria um dia sequer.

Percebendo que ela estava certa, o ogro aceitou o convite e tornou-se o tutor da menina e de sua meia-irmã. Assim que ele saiu da floresta de mãos dadas com a menina, algo mágico aconteceu diante dos olhos da garota. O ogro, que era grande, feio e assustador, transformou-se em um homem de estatura normal e de boa aparência. 

Não era a primeira vez que aquilo acontecia. Todas as vezes nas quais ele saía para levar comida paras as meninas, ele se transformava naquele homem. Por este motivo, após anos visitando o vilarejo, ninguém nunca fez alarde. Nunca viram um perigoso ogro rondando suas casas. Aos olhos dos outros ele era normal, um homem como outro qualquer.

A transformação mágica acontecia porque fora da Floresta dos Perdidos, o ogro tomava sua forma real, do ser humano que sempre foi. Quando ele entrava na Floresta, ele se transformava no monstro que acreditava ser: um ogro. 

Um dia, a menina sentada ao lado da meia-irmã perguntou ao ogro:

— Você não sente mais náuseas ao se aproximar de seres humanos?

E ele respondeu:

— Ainda sinto, mas hoje em dia, é bem raro que isso aconteça. Após conhecer melhor vocês duas, algo em mim mudou. Acho que antes, eu conhecia os seres humanos errados. Os que eu conhecia, realmente, me davam enjoos. Ainda dão quando me lembro deles. Mas agora, que conheço os seres humanos certos, meu coração se enche de alegria e felicidade quando eles chegam perto de mim.

Com o coração vazio preenchido de coisas boas, o homem se sentiu feliz. Já não era mais um ogro. Ao abraçá-lo mais uma vez, a menina também se sentiu feliz. Já não era mais uma órfã, agora tinha alguém para apoiá-la enquanto crescia.   

A Floresta dos Perdidos continuava bem ali perto de onde moravam. No entanto, já não se sentiam perdidos porque, tempos atrás, eles tinham se encontrado.

Eduardo Franciskolwisk

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